Por Júlio Marcelo de Oliveira*
Novamente os fatos passados no Rio de Janeiro colocam os tribunais de contas na berlinda. O governador Pezão indicou para ocupar o cargo de conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ) um deputado estadual, líder de seu governo na Assembleia Legislativa, sem curso superior, na vaga destinada aos conselheiros-substitutos, que de modo ainda mal explicado manifestaram desinteresse na vaga. Como um deputado sem curso superior poderia atender ao requisito constitucional do notório saber em áreas que tem afinidade com o trabalho de fiscalização realizado pelos tribunais de contas? Por que razão conselheiros concursados foram levados a assinar um mesmo documento desistindo de uma indicação privativa de sua carreira?
Submetido à pseudosabatina congratulatória, que é o que ocorre via de regra para os indicados para esses cargos, o deputado estadual viu seus projetos serem dissolvidos em razão de operação da Polícia Federal que o prendeu antes de seu nome ter sido aprovado em definitivo pelo plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
A prisão do deputado e de outros dois colegas seus, incluído o presidente da Alerj, decorreu de investigações feitas no âmbito do braço carioca da operação “lava jato”. Segundo o apurado, o indicado estaria envolvido em vários crimes cometidos contra o patrimônio público. Além da falta de notório saber, faltaria, ainda, ao indicado reputação ilibada.
Com menos alarde, mas com igual gravidade, um secretário de fazenda e um deputado estadual foram indicados, pseudosabatinados, nomeados e empossados conselheiros do TCE do Mato Grosso do Sul. Um deles é réu em ação movida pelo Ministério Público estadual por improbidade administrativa. O outro é réu em ação que o acusa de ter participado de desvio de R$ 2 milhões. Falta a ambos o requisito da reputação ilibada.
Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o réu em ação por improbidade ou em ação criminal não possui reputação ilibada. Entende o STF que só se pode afirmar a falta de idoneidade moral após a condenação, mas a reputação ilibada resta atingida já com a existência das ações. Alguém imagina que um banco contrataria para diretor alguém denunciado ou mesmo investigado por fraude financeira? É preciso não confundir reputação ilibada com presunção de inocência. Esta é instituto de direito penal e diz respeito ao direito à liberdade, aquela diz com o conceito que a pessoa goza no meio social, independentemente de condenações judiciais. Reputação ilibada é fundamental porque o nomeado leva sua reputação para a instituição que passará a integrar. Indicados sem boa reputação comprometem a credibilidade das instituições e, numa democracia, instituições que funcionem são a base de tudo.
De fato, com esses antecedentes, os empossados no cargo de conselheiro do TCE-MS, cargo equivalente ao de desembargador do Tribunal de Justiça, não teriam sequer sua inscrição definitiva deferida em um concurso para juiz de primeiro grau, conforme determina a Resolução 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça, que regula o ingresso na magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional.
O CNJ exige dos candidatos ao ingresso na magistratura que apresentem: certidão dos distribuidores criminais das Justiças Federal, Estadual ou do Distrito Federal e Militar dos lugares em que haja residido nos últimos cinco anos, folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia Civil Estadual ou do Distrito Federal, onde haja residido nos últimos cinco anos e declaração firmada pelo candidato, com firma reconhecida, da qual conste nunca haver sido indiciado em inquérito policial ou processado criminalmente ou, em caso contrário, notícia específica da ocorrência, acompanhada dos esclarecimentos pertinentes. O candidato à magistratura será objeto ainda de sindicância de sua vida pregressa e investigação social.
Se alguém tentar ingressar na magistratura em desacordo com essa resolução do CNJ, se alguma comissão de concurso for leniente no exame da vida pregressa do candidato, o CNJ pode intervir para proteger a incolumidade da magistratura, a sanidade do Poder Judiciário. Além desse tipo de problema, o CNJ tem uma série de outras competências de controle sobre a atividade administrativa e financeira do Poder Judiciário e sobre o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.
No caso dos tribunais de contas, não há órgão administrativo de controle estabelecido. Ninguém controla o controlador. Só demoradas ações no Poder Judiciário, com seus múltiplos recursos, podem de alguma forma procurar impedir desvios na indicação de conselheiros ou punir condutas ilícitas de algum de seus membros. Os conselheiros dos TCEs têm foro por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, ou como prefiro chamar, o desaforo dos privilegiados, que resulta em tantas e tantas ações prescritas no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, cujo desenho institucional não favorece uma tramitação célere de ações penais originárias.
Quando ocorre a indicação de alguém sem os requisitos para o cargo, ouve-se um silêncio constrangedor no tribunal indicado. Excetuado o TCU, que resistiu por duas vezes a indicações de senadores sem reputação ilibada, não há registro de tribunal de contas estadual que tenha tomado qualquer iniciativa de negar posse a nomeados que não perfazem o quanto manda a Constituição.
Ainda nesta segunda-feira (20/11), o Superior Tribunal de Justiça recebeu denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral de República contra um conselheiro do TCE-ES. Ele é acusado de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa. Registre-se como fato muito positivo o empenho da douta procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em fazer pessoalmente sustentação oral do caso perante a Corte Especial do STJ, demonstrando a importância que Sua Excelência dá ao enfrentamento dos desvios de conduta no âmbito dos tribunais de contas, que são e sempre serão a primeira trincheira no combate à corrupção.
Infelizmente, há muitos problemas nos tribunais de contas do país. Muitos frutos das equivocadas indicações políticas, outros derivados do fato de que não há órgão destinado ao controle sobre os tribunais de contas. A mera existência de controle, a expectativa que ele gera, é importante elemento de dissuasão, de inibição de práticas ilícitas. A certeza da falta de controle funciona justamente ao contrário, desinibe aqueles que se deixam seduzir pela obtenção fácil de vantagens que atos ilícitos oferecem.
Tramitam no Congresso Nacional duas propostas de estabelecimento de controle sobre os tribunais de contas. Uma, defendida pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon) pretende a criação de um Conselho Nacional dos Tribunais de Contas, de forma análoga ao CNJ e CNMP, mas com competências que vão além do controle administrativo e financeiro desses órgãos e verificação do cumprimento dos deveres funcionais dos ministros e conselheiros, titulares e substitutos. Pretende também essa proposta que o CNTC tenha poderes de uniformização de jurisprudência de normas federais de observância obrigatória pelos estados e municípios, tais como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a leis que tratam de licitações, concessões, parcerias público-privadas etc. É o que prevê a PEC 22/2017, no Senado Federal.
Essa uniformização de jurisprudência destoaria da finalidade dos conselhos e subverteria a lógica das normas gerais de observância obrigatória pelos estados. Ora, se compete à União editá-las, deve competir também ao órgão que tem a obrigação de fiscalizá-las na União manifestar qual interpretação deve prevalecer e ser de observância obrigatória pelos estados e municípios. Por isso, deve caber ao TCU fazer essa interpretação e aos TCEs observá-la, sem prejuízo de que possam fazer chegar ao TCU suas razões de fato e de direito para colaborar para a formação da interpretação adequada.
A outra proposta é a defendida pela Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon) com apoio da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos TCs (ANTC), que consta da PEC 329/2013, em tramitação na Câmara Federal. Por ela, o controle sobre os tribunais de contas e seus membros seria exercido pelo CNJ, que teria sua competência alargada e poderia até ter seu nome alterado para Conselho Nacional da Magistratura.
Os principais argumentos em favor do controle pelo CNJ são de ordem lógica, sistêmica, econômica e consequencialista.
Os membros dos tribunais de contas são regidos pela Lei Orgânica da Magistratura, mesmo diploma que disciplina a vida funcional de 18,1 mil juízes em todo o país. Os ministros do TCU são equiparados pela Constituição Federal aos ministros do STJ. Os conselheiros dos TCEs e TCMs são equiparados a desembargadores dos tribunais de justiça. Se têm os mesmos direitos, prerrogativas e deveres funcionais, devem estar submetidos ao mesmo controle. Não faz sentido haver dois órgãos para interpretar e aplicar o mesmo regime jurídico que deve incidir sobre os magistrados. Não faz sentido o CNJ adotar um entendimento sobre a conduta de um juiz e um eventual CNTC ter entendimento diverso sobre a mesma conduta praticada por um membro de TC.
Além disso, o controle pelo CNJ tende a ser mais efetivo. É conhecida a dificuldade que as corporações têm para punir seus integrantes. Quanto menor o grupo e quanto maior a proximidade entre quem fiscaliza e quem é fiscalizado, mais difícil é esse controle. Não é à toa que as corregedorias dos tribunais de todo o país têm dificuldades para punir desembargadores. No caso dos TCEs, com apenas sete membros, e TCU, com apenas nove, essa dificuldade é ainda mais sentida. Justamente para superar essa dificuldade histórica, resultante do convívio próximo entre os próprios pares, que foi criado o CNJ. É muito mais fácil examinar com distanciamento e isenção a conduta de alguém com quem não se tem convívio próximo. O CNJ é heterogêneo, composto de juízes de ramos distantes, e exerce essa função sobre 18.100 juízes, conforme seu último censo. Já um eventual CNTC seria extremamente homogêneo e exerceria sua competência sobre um universo de apenas 231 ministros e conselheiros titulares, acrescido de uma centena de substitutos. Trata-se de um universo muito pequeno de jurisdicionados, em que provavelmente todos se conheceriam mutuamente, incidindo na mesma dificuldade humana de tomar o distanciamento necessário para uma avaliação rigorosa.
Há também o argumento econômico. Não é necessário e, portanto, não é racional, criar um novo órgão público, com mais gabinetes, mais cargos de apoio, prédios, carros, enfim, toda estrutura que um órgão demanda, quando já há um órgão estruturado, funcionando bem e que pode ser adaptado, com muito menor custo, para exercer também a função que o novo órgão executaria.
Argumenta-se que os tribunais de contas são muito peculiares e que o CNJ não está preparado para lidar com essas peculiaridades. Evidentemente o CNJ passaria por um momento de aprendizado institucional e adaptação. Certamente, em pouco tempo, com o auxílio dos próprios tribunais de contas, teria todas as condições de exercer bem essa nova competência. Além da equiparação entre direitos e deveres de seus membros, a Constituição Federal conferiu aos tribunais de contas todo um conjunto de atributos próprios dos tribunais do Poder Judiciário, como a completa autonomia, independência, autogoverno, iniciativa para propor suas leis de organização interna e de criação de cargos. Há muito mais semelhanças que peculiaridades.
Sustenta-se ainda que o controle pelo CNJ feriria a separação dos poderes, uma vez que o CNJ se destinaria apenas ao Poder Judiciário e os tribunais de contas estão mais próximos do Poder Legislativo. Ora, o CNJ hoje se destina apenas ao Poder Judiciário porque o constituinte derivado que o criou assim pensou naquele momento. Não há nada que não permita alargar sua competência para abarcar também os tribunais de contas. Afirmar que tal mudança não pode ocorrer apenas porque ele foi inicialmente desenhado para cuidar apenas do Poder Judiciário é pensar dogmaticamente, sem atentar para a necessária e possível evolução das instituições, como o próprio CNJ foi uma evolução introduzida pelo constituinte derivado.
Nosso sistema constitucional é repleto de freios e contrapesos. O presidente da República escolhe o ministro do STF! O Senado o sabatina e tem o poder de rejeitá-lo! Alguém imagina interferência maior de um Poder em outro? A separação de poderes não é e nunca foi absoluta em nenhum país. Em verdade, o poder estatal é uno e suas funções é que são divididas, conforme o desenho institucional que seja mais adequado a cada nação em cada momento de sua história.
O controle dos TCs pelo CNJ sequer poderia ser visto como freio ou contrapeso, porque não afeta em nada o funcionamento do Poder Legislativo. Grande parte da doutrina, inclusive, sequer considera os tribunais de contas como parte do Poder Legislativo, mas apenas um órgão do Estado que presta auxílio ao Poder Legislativo, dada a completa independência e autonomia dos TCs. De fato, a divisão dos órgãos do Estado entre os assim denominados três Poderes não é perfeita. É uma divisão que deixa restos. Sobram dessa divisão duas instituições que se caracterizam justamente por sua autonomia, independência e equidistância entre os três Poderes: os tribunais de contas e o Ministério Público.
Para se argumentar que haveria alguma fragilização na separação de poderes desenhada pelo constituinte originário, seria necessário apontar algum prejuízo para o bom funcionamento do Poder Legislativo, algum embaraço ao livre exercício de suas atribuições. Nem de longe isso é apontado.
Registre-se o manifesto assinado por mais de 40 juristas do mais alto gabarito, entre constitucionalistas, administrativistas e professores de direito financeiro das mais renomadas universidades brasileiras, no sentido da perfeita constitucionalidade e compatibilidade do controle dos tribunais de contas pelo CNJ. O ministro emérito do STF, Carlo Velloso, também se manifestou nesse sentido em entrevista concedida a um importante jornal.
Por fim, o argumento mais importante, que deveria presidir toda essa discussão sobre o controle do CNJ sobre os tribunais de contas é o de que esse controle fará bem não só para os tribunais de contas, mas também para o CNJ e todo o Poder Judiciário. Trata-se de uma proposta de simbiose, de uma relação ganha-ganha, em que quem mais ganharia é a sociedade brasileira.
O controle pelo CNJ elevaria o padrão de funcionamento dos Tribunais de Contas em muitos aspectos, sobretudo na sua padronização processual e na verificação do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, Mas também o CNJ elevaria seu padrão de controle assimilando e se apropriando da expertise de auditoria dos tribunais de contas, conhecendo os muitos trabalhos de excelência desenvolvidos nos TCs, o que se refletiria no seu modo de exercer controle também sobre os órgãos do Poder Judiciário. Em outras palavras, teríamos TCs melhores, mas também teríamos um CNJ e um Poder Judiciário melhor.
As más notícias sobre os TCs, em conjunto com o isolamento em que hoje se encontram, fomentam uma visão negativa, apenas parcial, de menos valia dessas instituições perante os membros do Poder Judiciário e perante a sociedade. Isso é natural, é humano. O preconceito é fruto do desconhecimento, daquilo que ignoramos sobre o outro.
É preciso conhecer os tribunais de contas para perceber que, para além de seus muitos e graves problemas, existe uma instituição que tem um potencial imenso de alavancar o desenvolvimento do país, de promover uma verdadeira revolução na administração pública. Por isso é tão importante que eles sejam conhecidos, que seus problemas sejam debatidos, enfrentados e debelados, que eles possam revelar à sociedade brasileira o potencial enorme de talento e capacidade de trabalho hoje muito obscurecido por uma sucessão de escândalos.
A criação de um CNTC incidiria no erro de manter os tribunais de contas isolados, segregados, como num gueto, com dificuldades para superar seus problemas. Seu controle pelo CNJ, ao contrário, facilitaria a correção de desvios e desvelaria para a sociedade seus melhores atributos, permitindo não só sua própria evolução, mas também a de todo o Poder Judiciário e de toda a Administração Pública brasileira. O Brasil e os tribunais de contas só têm a ganhar com seu controle pelo Conselho Nacional de Justiça!
* Júlio Marcelo de Oliveira é procurador do Ministério Público de Contas no Tribunal de Contas da União e presidente da Ampcon
Fonte: Revista Consultor Jurídico