Artigo defende alteração na forma de escolha de membros dos Tribunais de Contas por meio de proposta de iniciativa popular
Publicação em 13 de novembro de 2017

Em artigo originalmente apresentado no VII Encontro Internacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Conpedi), realizado no último mês de setembro, em Portugal, o promotor de Justiça do Ministério Público Estadual (MPES) e ex-auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE-ES), Rodrigo Monteiro da Silva, defende a alteração da forma de escolha dos membros dos Tribunais de Contas estaduais por meio de proposta de emenda constitucional de iniciativa popular, para que haja, por exemplo, concurso público como requisito de ingresso para os conselheiros, além do cumprimento das demais exigências previstas na Constituição Federal. Confira abaixo o artigo na íntegra:

 

A ALTERAÇÃO NA FORMA DE ESCOLHA DE MEMBROS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS ESTADUAIS POR MEIO DE PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL ORIUNDA DE INICIATIVA POPULAR: UMA INTERPRETAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ARTIGO 75 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL[1]

Rodrigo Monteiro da Silva[2]

SUMÁRIO

Considerações iniciais; 1 Democracia participativa como fundamento de validade de uma sociedade ativa; 2 Tribunais de Contas: como conciliar sua função essencial à consecução do direito fundamental à boa gestão pública diante do déficit de legitimidade democrática de suas decisões? 3 Iniciativa popular para alteração da forma de escolha dos membros dos Tribunais de Contas estaduais: necessidade de uma interpretação democrática do artigo 75 da Constituição Federal; Considerações finais; Referências bibliográficas.

RESUMO

O presente artigo se propõe a examinar a natureza dos Tribunais de Contas, com a demonstração de sua imprescindibilidade à concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, e noutro vetor abordar a necessidade do fortalecimento de sua legitimidade democrática, a partir da adoção de critérios objetivos e isonômicos para a escolha de seus membros. Busca-se, para tanto, evidenciar as características da democracia e da soberania popular, com o enfoque na demonstração teórica de que o fortalecimento do sistema democrático participativo tem a possibilidade de complementar o modelo vigente na busca por uma sociedade politicamente ativa. Nesse contexto, será demonstrado que nos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e no Distrito Federal (os quais permitem alteração do respectivo texto constitucional por meio de emendas oriundas da vontade direta do povo), que é perfeitamente possível que haja a alteração na forma de escolha dos conselheiros dos Tribunais de Contas a partir de uma interpretação criativa e democrática do artigo 75 da Constituição Federal.

Palavras chave: Tribunais de Contas. Participação popular. Legitimidade democrática.

THE ALTERATION IN THE FORM OF CHOICE OF THE MEMBERS OF AUDITORS STATE COURT THROUGH CONSTITUTIONAL AMENDMENT PROPOSAL FROM POPULAR INITIATIVE: A DEMOCRATIC INTERPRETATION OF THE ARTICLE 75, OF FEDERAL CONSTITUITION

ABSTRACT

Introduction; 1. Participating democracy as validity foundation of an active society; 2. Auditors Courts: how to conciliate its essential function to the fundamental rights achievement to the good public management for the democratic legitimacy defict of their decisions? 3. Popular initiative for the alteration in the form of choice of the members of Auditors State Court: necessity of a democratic interpretation of the article 75, of Federal Constitution; Final considerations, Bibliographical references.

SUMMARY

The present article aims to examine the Auditors Court nature, with a demonstration of its essentially to the fundamental rights concretization provided in the Federal Constitution and, in another vector, approach the necessity of strengthening of its democratic legitimacy from the adoption of objective and isonomic criteria for the choice of its members. The aim is to, however, highlight the democracy characteristics and the popular sovereignty, with the focus on the theoretical demonstration that the strenthening participating democratic system has the possibility of complementing the current model, in the search for an politically active society. In this context, it will be demonstrated  that in the states of Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espirito Santo, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe and in the Distrito Federal (that allow alteration of this constitutional text throug amendments from the people direct will) it is perfectly possible that there is an alteration in the form of choice  of the Councelours of Auditors Courts from a creative and democratic interpretation of the article 75, of Federal Constitution.

KEY WORDS: Auditors Court. Popular Participation. Democratic Legitimacy.

MODIFICACIÓN EN EL PROCESO DE ELECCIÓN DE LOS CONSEJEROS DE LOS TRIBUNALES DE CUENTAS DEL ESTADO A TRAVES DE ENMIENDAS ORIUNDAS DE INICIATIVA POPULAR: UNA INTERPRETACIÓN DEMOCRÁTICA DEL ARTÍCULO 75, DE LA CONSTITUCIÓN DE BRASIL

RESUMEN

El presente artículo plantea el examen de la naturaleza de los Tribunales de Cuentas, con la demostración de su imprescindibilidad a la concretización de los derechos fundamentales previstos en la Constitución de Brasil y, en otro vector, abordar la necesidad del fortalecimiento de su legitimidad democrática con la adopción de criterios objetivos y de igualdad ante la ley para la elección de sus miembros. Se busca, por lo tanto, evidenciar las características de la democracia y de la soberanía popular, con el enfoque en la demostración teórica de que el fortalecimiento del sistema democrático participativo tiene la posibilidad de complementar el modelo vigente, en la búsqueda por una sociedad políticamente activa. En este contexto,  demostraremos que en los Estados de Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe y Distrito Federal (que permiten modificaciones del respectivo texto constitucional por medio de enmiendas oriundas de los anhelos  directos de la población) es perfectamente posible que haya un cambio en el proceso de elección de los Consejeros de los Tribunales de Cuentas, a partir de una interpretación creativa y democrática del artículo 75, de la Constitución de Brasil.

Palabras clave: Tribunales de Cuentas. Partipación popular. Legitimidad democrática.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição. Essa é a dicção do artigo 1º, parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil. Esse mesmo artigo demonstra que a nossa República tem como um de seus fundamentos a soberania, restando claro que o real detentor do poder soberano é o povo.

O poder soberano, assim, somente poderá ser concebido como de propriedade insofismável do povo, não havendo qualquer forma de seu exercício que não seja perpetrada em nome e em favor da sociedade, sendo inviável conceber a mera menção a qualquer poder superior à coletividade.

O princípio da soberania popular é, pois, de observância obrigatória, sob pena de se desmascarar a fachada dos Estados que dizem erigir sobre regimes democráticos e bases institucionais sólidas. No mesmo sentido, o princípio democrático exige a participação livre e igual daqueles sobre cujas vidas as decisões podem repercutir, sendo evidenciada a iniciativa popular como uma das formas de utilização do poder diretamente pelo povo, nos termos dos artigos 14, inc. III e 61, § 2º, da Constituição Federal.

A leitura do artigo 60, do texto constitucional, nos revela que não existe previsão expressa de alteração da Constituição por meio de iniciativa popular, em que pese a existência de raciocínios hermenêuticos construídos a partir de pesquisas e estudos reiterados afetos à revisão constitucional por meio de emendas oriundas da vontade originária do povo[3], [4].

Diversamente do que se percebe na Constituição Federal, as Constituições de dezessete estados, bem como a Lei Orgânica do Distrito Federal, estabelecem a possibilidade de alteração dos respectivos textos por meio de emenda oriunda da vontade direta do povo. Existiria, então, nos entes federativos que permitem a alteração da Constituição por meio de iniciativa popular vedação à alteração da forma de escolha dos conselheiros de Tribunais de Contas a partir de provocação direta da própria sociedade?

O artigo 75 da Constituição Federal, que trata das regras afetas ao Tribunal de Contas da União impede, assim, em tese, que nos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e no Distrito Federal, haja a alteração da forma de escolha dos conselheiros dos respectivos Tribunais de Contas a partir da provocação do povo, desde que respeitados os princípios gerais previstos na própria Constituição Federal? Estaria impedida, também, a tentativa de se reconstruir (ou construir) a legitimidade democrática das Cortes de Contas?

O artigo 71 da Constituição Federal nos revela que os Tribunais de Contas são órgãos técnicos que exercem auxílio ao Poder Legislativo. Infelizmente pode ser observado principalmente em nível estadual que os Tribunais de Contas, ao longo da história recente, foram ocupados por políticos de carreira, com inobservância dos critérios objetivos fixados no artigo 73, da Constituição Federal.

Nesse contexto, cria-se um claro problema: deixa-se de lado o critério técnico para o exercício das atribuições constitucionais dos Tribunais de Contas, prevalecendo a influência política, fato que leva à fragilização e estigmatização das Cortes de Contas, em razão de escolhas fisiológicas e corporativas que não raramente ofendem os preceitos técnicos previstos na Constituição.

Uma análise coerente do princípio da simetria revela que as regras gerais relacionadas ao controle externo trazidas no texto constitucional devem servir de norte aos legisladores estaduais, de modo que não haja, jamais, qualquer vedação ou mitigação do seu real sentido atribuído pelo constituinte.

Pretende-se, nesse contexto, analisar as peculiaridades das Constituições dos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, bem como da Lei Orgânica do Distrito Federal[5], acerca da possibilidade de revisão constitucional promovida por processo de iniciativa popular, de modo a buscar uma compreensão sobre a composição dos respectivos Tribunais de Contas, a (in)existência de legitimidade democrática de suas decisões, e, sobretudo a possibilidade de alteração da forma de escolha de seus membros a partir de emendas constitucionais construídas pela vontade soberana do povo.

Em outro falar, busca-se, assim, conferir uma interpretação constitucional criativa às regras gerais estabelecidas para o exercício do controle externo da atividade administrativa, de modo que seja possível conferir legitimidade democrática aos Tribunais de Contas.

 

1 DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO FUNDAMENTO DE VALIDADE DE UMA SOCIEDADE ATIVA

A democracia não está vinculada apenas a uma limitação do poder do Estado como forma de garantir o exercício de liberdades individuais, mas principalmente com a participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões governamentais, tendo em vista que serão legítimas essas normas apenas quando os próprios destinatários participarem da sua elaboração[6].

A essência da democracia representativa assenta-se na titularidade do poder nas mãos do povo. O governo é exercido pelos representantes eleitos, porém o poder pertence ao povo. A efetiva participação popular no seio social relaciona-se ao aumento dos níveis de eficiência decisional, eis que gera uma produtiva relação dialética entre interesse e eficácia no quadro dos processos de tomada de decisões[7].

A participação de todos no ato fundacional do princípio condutor da vida em sociedade e a consequente sujeição à vontade comum criam uma blindagem à força desagregadora dos interesses particulares voltados apenas para o benefício pessoal.

Nesse sentido Silva[8]:

A formação de uma sociedade verdadeiramente ativa perpassa pela busca de novas formas de administração política pautadas no fortalecimento da participação dos cidadãos e, para tanto, se torna premente a necessidade de um contínuo alargamento na transparência dos procedimentos públicos em geral.

A participação popular, além de inserir o cidadão nos processos de tomada de decisões, possui igualmente o condão de possibilitar a construção de vínculos sólidos entre os membros da sociedade. Inegável constatar que a busca pelo ideal de uma sociedade ativa e participante na tomada de decisões guarda sintonia com a necessidade de aumentar o senso de pertencimento à determinada comunidade, bem como do reconhecimento da política como algo em comum, voltada à satisfação, unicamente, dos anseios coletivos.

A preocupação do cidadão com questões de interesse público contribui para a formatação de um espaço cultural fomentador do fortalecimento de um regime democrático, no qual o processo de tomada de decisões não se afasta do núcleo detentor do poder. Se todo poder realmente emana do povo, não faz sentido a manutenção de um processo decisório pautado em movimentos centrípetos.

A participação apresenta-se, pois, como um fator de descolonização do espaço político e tende a promover uma aproximação viável entre a política e o cidadão comum, em benefício da diminuição de sua sensação de isolamento e de impotência em razão dos rumos das decisões políticas[9].

Democracia e participação se exigem, não havendo democracia sem participação, sem povo. O regime será tanto mais democrático quanto tenha desobstruído canais, obstáculos à livre e direta manifestação da vontade do cidadão[10].

O poder extremamente difuso na comunidade, eventualmente ganha personalização em um patriarca, em um cacique ou em um pajé, mas somente na sociedade começa a transcender de uma concentração em pessoas para uma concentração em instituições. Nessa passagem, do poder personalizado para o poder institucionalizado, ele se aperfeiçoa enquanto instrumento social vocacionado a servir não mais a uma vontade individual, mas a uma ideia[11].

Inquestionável, nesse sentido, que a democracia não pode ser apenas o cumprimento de um ritualismo eleitoral, da simplicidade em se atribuir um voto em uma urna eletrônica. Democracia significa a existência de uma sociedade formada por homens capazes de apresentar interesse e discernimento pelas demandas que irão influenciar a vida de todos. Significa, pois, a existência de cidadãos ativos.

A democracia participativa como instrumento da soberania popular não pode ser vista apenas como um engodo, um simples exercício de retórica. A sociedade sempre espera da política a redenção para todos os seus males, entretanto, cabe aos próprios cidadãos buscarem, por meio da ampla participação, o fortalecimento do regime democrático e a recuperação da legitimidade[12].

Todos os dias vivenciamos exemplos práticos aptos a afirmar que no modelo democrático da forma como conduzido, tem sido verificada a insatisfação dos representados em razão do comportamento dos seus representantes. Há um sentimento geral de que os representantes eleitos pelo povo romperam o nexo de confiança para com os representados, passando a agir tão somente na busca pela satisfação de interesses não confessáveis, operando-se um vácuo, um hiato quase intransponível entre os representantes e os reais detentores do poder.

Afirmar que o povo não detém competência ou capacidade para uma efetiva tomada de decisões representa também um argumento frágil, eis que esse “despreparo técnico” atinge igualmente os próprios representantes do povo, eleitos para cargos dos Poderes Executivo e Legislativo e, entretanto, não se exige “capacitação técnica” como requisito para o registro de candidaturas[13].

A sociedade percebe-se desprotegida, desprestigiada e alijada à construção dos processos de tomada de decisões, que, não raro, surgem em proveito de grupos componentes de uma elite divorciada dos anseios coletivos. Dá-se, nesse sentido, a construção de uma sociedade órfã, que não enxerga em seus representantes verdadeiros líderes, incapazes, ante ao déficit de legitimidade, de conduzir e gerir os destinos do todo.

A participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e possibilitam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político em uma sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses[14].

 

2 TRIBUNAIS DE CONTAS: COMO CONCILIAR SUA FUNÇÃO ESSENCIAL À CONSECUÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À BOA GESTÃO PÚBLICA DIANTE O DÉFICIT DE LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DE SUAS DECISÕES?

Para o fiel exercício de suas finalidades e dos seus compromissos constitucionais o Estado necessita de recursos financeiros, por meio dos quais ocorrerá a materialização dos mais diversos direitos fundamentais. Tais recursos pertencem ao povo que não pode, por si só, promover sua gestão, valendo-se para tanto de intermediários legalmente habilitados para esse fim[15].

Como esses recursos são finitos e por vezes mal utilizados, torna-se necessária a existência de um controle externo capaz não só de prevenir a malversação do erário, bem como, aplicar sanções aos devidos responsáveis. Residem aí algumas das funções mais relevantes dos Tribunais de Contas, que atuam como órgãos auxiliares do controle externo a ser exercido pelo Poder Legislativo.

Em razão de sua relevância social, torna-se premente a compreensão a ser construída acerca da natureza dos órgãos públicos, em especial aqueles voltados ao exercício do controle dos atos da Administração Pública, essenciais à materialização do direito fundamental à boa gestão pública. Necessário que toda e qualquer forma de análise estrutural dos órgãos de controle ocorra em sintonia com os princípios gerais que norteiam a Constituição Federal, de modo que se fortaleçam (ou se construam) vínculos sólidos perante os reais destinatários do poder.

Moreira Neto apresenta entendimento dotado de robustez ao afirmar que:

A percepção que se deve ter dos órgãos de controle de contas, como, de resto, de quaisquer outros órgãos que passem a exercer as modernas e complexas funções de controles recíprocos das policracias contemporâneas, não será mais a que resultava de uma tradicional taxinomia orgânico-funcional constitucionalmente adotada, porém, mais do que isso, a que parta de uma ampla compreensão do que esses órgãos hoje representam como bastiões dos direitos fundamentais e da democracia[16].

Uma análise minimalista do artigo 71, da Constituição Federal, evidencia que cabe ao Tribunal de Contas da União a função de órgão auxiliar do Congresso Nacional, no exercício do controle externo da função administrativa. Em outro sentido, torna-se necessário ampliar o espectro de legitimidade das Cortes de Contas de modo geral, assimilando-as, nos termos do regime democrático vigente, como verdadeiras ferramentas indispensáveis à materialização dos direitos fundamentais.

O Congresso Nacional, bem como as Assembleias Legislativas e Câmara Distrital devem, sim, ser entendidos como os destinatários imediatos das atribuições exercidas pelos Tribunais de Contas, entretanto, todo o seu produto subordina-se à satisfação dos anseios da coletividade. Impossível se falar em consecução de direitos fundamentais sem a existência de Tribunais de Contas fortes, independentes e imparciais.

O conceito de Estado Democrático de Direito contemporâneo, na visão de Moreira Neto, passa por uma verdadeira diáspora de centros de poder[17], uma vez que surge um novo tipo de organização política apartada das configurações dominantes, havendo, a partir de então, que se conceber a função de protagonista à sociedade civil. Nesse viés os Tribunais de Contas exercem (ou deveriam exercer) um papel relevante na formação contínua do processo de empoderamento social.

A concretização desse fortalecimento passa pela necessidade de transformação e ressignificação dos Tribunais de Contas, fazendo-se necessária a construção de mecanismos que permitam o amadurecimento de sua independência política, com o consequente aprimoramento da legitimação democrática de suas decisões, em sintonia com o que se entende por legitimidade finalística[18]. A mera legitimidade formal não se mostra suficientemente apta a alicerçar as estruturas do que se espera de um Tribunal de Contas engajado no momento de transformação social.

Esse processo de fortalecimento da legitimidade dos Tribunais de Contas, invariavelmente, passa pela revisão na forma de escolha de seus membros, os quais  não são selecionados por meio de procedimentos democráticos e isonômicos. Há, sem dúvidas, valorações e escolhas claramente políticas para se “aferir” os requisitos constitucionais (artigo 73, § 1º, da Constituição Federal) de matriz subjetiva da idoneidade moral, reputação ilibada e notórios conhecimentos técnicos. Por vezes, concebem-se interpretações antagônicas e autofágicas para se buscar a confirmação de determinadas inclinações claramente políticas.

Relevante anotar as observações tecidas por Vieira em editorial publicado em novembro de 2013, no Jornal “Estadão”[19]:

Historicamente, tais requisitos (idoneidade moral e reputação ilibada) vêm sendo sistematicamente vilipendiados. Num odioso fisiologismo e corporativismo, Executivo e Legislativo têm preenchido esses cargos por apadrinhados políticos, geralmente ocupantes de cargos de secretariado, e por deputados – apesar de a muitos deles faltar o indispensável conhecimento técnico ou atributos de ordem moral.

[…]

Essa situação é resultado da prevalência da escolha política em detrimento da escolha técnica dos conselheiros. Reflete, nitidamente, os interesses que se quer ver resguardados pelos Poderes intervenientes no processo. Os conselheiros dos Tribunais de Contas são responsáveis pela fiscalização da execução e aplicação dos recursos públicos estaduais e municipais, mas por vezes funcionam como fiéis garantidores do cumprimento de dívidas eleitorais. Por essa razão, deputados e governador não se intimidam em indicar para o cargo pessoas dispostas a alimentar o fisiologismo à custa de recursos compulsoriamente obtidos dos cidadãos.

[…]

A escolha, selada por alianças políticas partidárias que visam fechar apoios para a campanha eleitoral do ano vindouro, demonstra quão longe está a verdade – nem tão escondida, mas camuflada por discursos demagógicos, apoiados em suposto resguardo do direito individual e fundamental da presunção de inocência.

Situação dessa natureza restou observada no Estado do Espírito Santo no ano de 2013, ocasião em que um membro foi nomeado para compor o Tribunal de Contas, contudo essa nomeação foi contestada pelo Ministério Público de Contas sob a alegação de que o novo Conselheiro não preenchia os requisitos exigidos pela Constituição relativos à idoneidade moral e reputação ilibada, uma vez ter sido condenado, em Primeira e Segunda Instâncias, pela prática de ato de improbidade administrativa, no ano de 2002, quando ainda exercia o mandato de deputado estadual.

De destacar que a partir da confirmação da condenação pelo Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (Autos n.º 0701437-23.2007.8.08.0024[20]), operou-se a incidência da condição de inelegibilidade prevista no artigo 1º, inc. I, “l”, da Lei Complementar n.º 64/1990[21], com as alterações promovidas pela Lei Complementar n.º 135/2010[22] (Lei da ficha limpa).

A análise desse caso concreto não deixa dúvidas sobre a fragilidade democrática no processo de escolha de integrantes dos Tribunais de Contas, eis que por razões de conveniência política optou-se pela indicação/nomeação de um “político de carreira” que se viu alcançado pelos efeitos da inelegibilidade e não mais poderia se candidatar a cargo eletivo.

E não se trata de caso isolado. Estudos realizados pela Associação Nacional do Ministério Público de Contas mostram que quarenta e oito dos duzentos e quarenta Ministros e Conselheiros de Tribunais de Contas sofreram (ou sofrem) algum tipo de investigação relacionada a atos de corrupção[23]. Há, assim, a constatação de que vinte por cento dos integrantes das Cortes de Contas brasileiras, em tese, não possuem idoneidade moral e reputação ilibada para o exercício da função.

As constatações trazidas por Garcia e Figueiredo evidenciam com clareza a fragilidade dos Tribunais de Contas materializada na forma de escolha de seus membros:

O controle pelo Tribunal de Contas é a outra via de que dispõe o Legislativo para corrigir os desvios e abusos praticados por administradores. Sua competência é extremamente ampla, assim como seus poderes. Lamentavelmente, não tem sido essa via a mais eficiente, nem para evitar a ocorrência de desvios, nem para puni-los. A forma de provimento de seus membros vitalícios e a falta de compromisso técnico de suas decisões acabam comprometendo sua legitimidade e autoridade no controle da gestão financeira do Estado[24].

De igual modo Ribeiro adverte sobre a necessidade de urgente alteração na forma de organização dos Tribunais de Contas, que se encontram contaminados por influências políticas em razão da forma de indicação e escolha de seus membros:

Não é possível continuar imaginando um controle eficaz e independente, se os ocupantes dos cargos de direção desse controle são subordinados, de uma forma ou de outra, às autoridades que devem ser controladas. Urge uma mudança imediata em sua forma de organização. Os Tribunais de Contas encontram-se fortemente contaminados por influências políticas, consequência do modo de indicação dos seus conselheiros, não obstante possuírem, na maioria dos casos, um corpo funcional preparado tecnicamente e detentor de responsabilidade profissional exemplar[25].

Evidencia-se, pois, que apesar de vivermos em um Estado Democrático de Direito, por vezes somos surpreendidos por escolhas políticas que mais se adequam às características do regime feudal, posto que desprovidas de isonomia e meritocracia, claramente afastadas dos requisitos elencados na Constituição Federal, a qual conferiu aos Tribunais de Contas o importante papel de ser instrumento para se respeitar o Estado Democrático de Direito[26].

Ao pesquisar sobre os problemas enfrentados a propósito da ausência de eleições diretas para cargos diretivos junto ao Poder Judiciário, Leite apresenta argumentos que igualmente se enquadram na temática da frágil legitimidade democrática dos Tribunais de Contas, destacando que a ausência de democracia compromete decisivamente a função precípua de materializar direitos humanos, eis que a democracia é condição sine qua non para a efetivação do Estado Democrático de Direito[27].

A aproximação dos Tribunais de Contas com a sociedade não pode limitar-se à regra prevista junto ao artigo 74, § 2º, da Constituição Federal, que permite a qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato denunciar irregularidades e ilegalidade perante a Corte de Contas. A evolução esperada dos Tribunais de Contas, apta a ensejar o fortalecimento de sua legitimidade e verdadeira autonomia, somente será alcançada por meio de mecanismos transparentes e impessoais no processo de escolha de seus integrantes.

O exercício da relevante função de ministro ou conselheiro de contas, como se percebe, correlaciona-se a uma gama de poderes e responsabilidades, demonstrando-se desarrazoado vincular a escolha de integrantes dos Tribunais de Contas a critérios puramente políticos e, não raro, motivações ideológicas e partidárias.

 

3 INICIATIVA POPULAR PARA ALTERAÇÃO DA FORMA DE ESCOLHA DOS MEMBROS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS ESTADUAIS: NECESSIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ARTIGO 75 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

 Como sustentar ou buscar o fortalecimento da legitimidade dos Tribunais de Contas diante da ausência de requisitos democráticos de escolha de seus membros? Como em um Estado de Direito é possível conceber que um órgão de extrema relevância para a soberania e para o regime democrático, garantidor dos direitos fundamentais, seja composto de modo não democrático? Como conciliar a ideia de um órgão incumbido de impedir atos de desgoverno ser composto por indicação do próprio Governo?

Desde a promulgação da Constituição Federal já se vão mais de vinte e oito anos de muitos erros e acertos. A consolidação dos Tribunais de Contas, sem dúvidas, foi um desses acertos, entretanto é preciso buscar uma adequação de modo a aprimorar o exercício do controle externo da atividade administrativa. Nesse sentido, coerentes são as colocações do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto:

O desiderato constitucional é este. Se, na prática, os Tribunais de Contas muito se distanciam da função que lhes confiou a gloriosa Lex Legum de 1988, trata-se de disfunção ou defecção que urge corrigir. Tal como se deu no âmbito do Ministério Público, instituição que, zelosamente guardada pela Constituição, da Constituição cuida com um tipo de zelo que mais e mais desperta na consciência coletiva toda a admiração e todo aplauso[28].

A disfunção e defecção acima citadas coerentemente pelo ex-Ministro Carlos Ayres Brito é percebida por meio de uma singela análise: o cidadão comum pode sonhar em colaborar com o processo de transformação social de várias maneiras, sendo-lhe permitido, em tese, por meio de seus esforços, galgar na seara legislativa o posto de vereador, deputado estadual, deputado federal ou senador, desde que se submeta às regras de um processo eleitoral; na seara administrativa, de igual sorte, ao cidadão é permitido (e possível) chegar ao posto de prefeito, governador ou presidente da república; cabe-lhe, também, caso seu desejo de contribuição à formação de uma sociedade mais justa se dê por meio do ingresso nas carreiras da Magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Polícia Civil, da Polícia Militar, entre outras, deverá submeter-se aos critérios objetivos e isonômicos do concurso público.

Quanto à composição dos Tribunais de Contas, salvo as vagas destinadas às carreiras de auditores e aos membros do Ministério Público junto ao respectivo Tribunal[29], jamais haverá, objetiva e isonomicamente, escolha desprovida de critérios políticos (não raramente ideológicos e partidários), nem a possibilidade de o cidadão comum ocupar a função de conselheiro de contas, uma vez que, como regra, a escolha não está adstrita a qualquer modelo que se assemelhe ao que conhecemos por democracia.

A proposta de alteração na forma de escolha dos integrantes dos Tribunais de Contas estaduais, mediante processo legislativo iniciado pela vontade popular, tem o escopo de conceber a esses relevantes órgãos de controle externo um espaço democrático detentor de autêntica e efetiva legitimidade[30].

Não se busca causar qualquer óbice à necessária estruturação sistêmica que deve existir no âmbito dos órgãos de controle externo, pelo contrário[31]. Objetiva-se trabalhar em prol de um fortalecimento e de uma emancipação das Cortes de Contas.

É evidente que investidas legislativas de enfraquecimento dos órgãos de controle são reiteradas, a exemplo do que se viu por ocasião da apresentação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 263/1995, de autoria do Deputado Federal Roberto Valadão (PMDB/ES), com relatório de admissibilidade da lavra do Deputado Federal José Genuíno (PT/SP), que tinha por objeto extinguir os Tribunais de Contas dos estados e municípios, transferindo suas obrigações para comissões das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais[32].

Os defensores de referida PEC, datada de mais de vinte anos, por certo, tinham o escopo de politizar (e partidarizar) ainda mais as decisões de competência dos Tribunais de Contas, algo não muito distante do que existe na atualidade. Com a proposta de critérios isonômicos para ingresso nesses Tribunais busca-se exatamente o contrário, ou seja, a completa “despartidarização” dos Tribunais de Contas, visando a sua máxima independência.

Ao comentar o artigo 75, da Constituição Federal, Ferreira Filho defende tratar-se de norma de extensão normativa de competência obrigatória pelos Estados-membros[33]. De fato, as Constituições estaduais não podem inovar de modo a causar qualquer óbice ou restrição às atribuições do Tribunal de Contas da União. Trata-se de vinculação obrigatória. Em outro sentido, inegável ser permitido, por meio de emenda às constituições estaduais, a criação de regras aptas a democratizar e legitimar a atuação dos respectivos Tribunais.

As Cortes de Contas possuem a responsabilidade de atuarem como instrumentos necessários ao equilíbrio das relações entre o Estado e a sociedade, sobretudo, quanto à fiscalização e retorno dos tributos pagos pelos cidadãos[34]. Para o exercício dessa missão, torna-se urgente que haja um desprendimento para com o Chefe do Poder Executivo, responsável pela indicação de seus membros.

Em que pese existir a vinculação constitucional dos Tribunais de Contas ao Poder Legislativo é evidente que se trata de órgão autônomo, não estando submetido à subordinação ou controle[35]. Tal independência estaria mais assegurada mediante processos meritórios de escolha dos conselheiros, de modo a se corrigir a desfuncionalidade vigente.

O Poder Legislativo exerce o controle externo, com o auxílio dos Tribunais de Contas, à luz do artigo 71, da Constituição Federal. Há, assim, um julgamento político que deveria ser subsidiado por critérios meramente técnicos, entretanto na forma vigente, percebe-se, por vezes, a existência de dupla análise política.

Para que tal desfuncionalidade seja superada torna-se necessária a alteração na forma de escolha dos integrantes dos Tribunais de Contas, deixando-se de lado critérios políticos na indicação de seus membros, prevalecendo a meritocracia, em sintonia com todos os requisitos previstos no artigo 73, § 1º, da Constituição Federal.

Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 793-9, de relatoria do Ministro Carlos Velloso[36]:

Os requisitos para nomeação dos membros do Tribunal de Contas da União, inscritos no art. 73, § 1º, da C.F., devem ser reproduzidos, obrigatoriamente, na Constituição dos Estados-membros, porque são requisitos que deverão ser observados na nomeação dos conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados e Conselhos de Contas dos Municípios. C.F., art. 75 (grifei).

Com a forma de escolha de integrantes dos Tribunais de Contas operando-se por meio de mecanismos objetivos e isonômicos, é evidente que todos os requisitos previstos na Constituição Federal deverão ser observados. Não se pretende buscar a fragilização dos Tribunais, mas sim sua emancipação.

Acerca da adoção das premissas gerais estabelecidas pela Constituição Federal em relação ao Tribunal de Contas da União, Villela defende que os Tribunais estaduais[37]:

Estão adstritos a observar, em suas linhas gerais, modelo federal de fiscalização orçamentária e financeira, no qual se incluem as normas constitucionais da União sobre estrutura, prerrogativas, competência, organização e funcionamento de seu Tribunal de Contas (grifei).

A criação de critérios isonômicos para ingresso na carreira dos Tribunais de Contas, encontra guarida em uma interpretação constitucional como concretização construtiva[38].

Para Barroso, a interpretação constitucional demanda uma atuação criativa, sendo certo que:

A norma jurídica não é o relato abstrato contido no texto legal, mas o produto da integração entre o texto e realidade. Em muitas situações, não será possível determinar a vontade constitucional sem verificar as possibilidades de sentido decorrentes dos fatos subjacentes.

[…]

A interpretação constitucional, portanto, configura uma atividade concretizadorai.e., uma interação entre os sistema, o intérprete e o problema – e construtiva, porque envolve a atribuição de significado aos textos constitucionais que ultrapassam sua dicção expressa[39].

E continua afirmando que:

De fato, se a resposta para os problemas não pode ser encontrada de maneira completa no comando que se encontra na legislação, é preciso procurá-la em outro lugar. E, assim, supera-se a separação profunda que o positivismo jurídico havia imposto entre o Direito e a Moral, entre o Direito e outros domínios do conhecimento. Para achar a resposta que a norma não oferece, o Direito precisa se aproximar da filosofia moral – em busca da justiça e de outros valores –, da filosofia política – em busca da legitimidade democrática e da realização de fins públicos que promovam o bem comum (…) (grifei)[40]. 

Se todo poder realmente emana do povo, não há como conceber a tentativa de se limitar a atuação legiferante da sociedade. A mera apresentação da proposta de emenda constitucional naqueles estados (e no Distrito Federal) que permitem a alteração de suas respectivas Cartas mediante iniciativa popular, não representa, de forma automática, a aprovação da matéria. O que se defende é a simples possibilidade de se discutir o tema, fato que não traz nenhum óbice ao princípio da separação dos Poderes.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Democracia e participação popular não são assuntos para discussão apenas em ambientes restritos a plenários, assembleias ou academias, pelo contrário se trata de tema que deve ser trazido para o cotidiano social, de modo a tornar-se acessível a todo cidadão.

Ser cidadão significa estar presente e fazer parte dos processos de tomada de decisões que englobem os anseios da coletividade. Significa fazer nascer dentro de cada homem e mulher a vontade de integrar o processo de tomada de decisões que passarão a interferir na vida de todos. Em suma, ser cidadão ativo representa participar da formação da vontade governativa.

Participação popular e democracia são conceitos indissolúveis e simbióticos, não sendo crível conceber um sem o outro. Torna-se necessário que haja o fortalecimento de uma cultura democrática mais participativa e o vetor dessa transformação não pode ser unicamente hegemônico, estatal. É preciso que, gradativamente, floresça em cada cidadão o desejo de tomar partido das decisões gerais, na busca da consolidação de uma cidadania plena. Faz-se urgente que as discussões sobre democracia não estejam unicamente afetas à esfera política, mas principalmente na seara das relações sociais como um todo.

A propósito do fortalecimento dos mecanismos de democracia participativa, exige-se, por exemplo, uma análise valorativa do artigo 75, da Constituição Federal, que surja para atender às demandas de uma sociedade que se tornou extremamente complexa, imune à interpretação tradicional do texto constitucional.

A solução para a situação apontada não será alcançada por meio de uma interpretação simplista do texto constitucional. Torna-se urgente superar o modelo meramente formalista, de modo a conferir aos Tribunais de Contas verdadeira representatividade e, sobretudo, legitimidade democrática, para que exerça com ampla autonomia e imparcialidade seu relevante papel trazido pela Constituição Federal.

E por que a opção pela iniciativa popular como forma de startar o processo de alteração das Constituições dos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e do Distrito Federal, de modo a se buscar o fortalecimento da legitimidade democrática de seus respectivos Tribunais de Contas?

Não é esperado que os atores dotados de competência legislativa para promoverem tais mudanças tenham o desejo de as fazer, eis que isso representaria uma considerável perda de influência política dos Poderes Executivo e Legislativo. Dessa maneira, cabe ao povo, real detentor do poder soberano, buscar, por meio de proposta de emenda constitucional, o fortalecimento da legitimidade democrática dos Tribunais de Contas, restando necessária assim uma valoração mais adequada do artigo 75, da Constituição Federal.

Nesse particular, se demonstrou ser perfeitamente possível que por meio de proposta de emenda constitucional, oriunda de iniciativa popular, ocorra a alteração na forma de escolha dos conselheiros dos Tribunais de Contas junto aos dezessete estados anteriormente citados, bem como do Distrito Federal, para que haja, por exemplo, concurso público como requisito de ingresso, desde que observados os demais requisitos previstos no artigo 73, § 1º, da Constituição Federal.

A análise do problema objeto da presente pesquisa, a ser obtida a partir de uma intepretação tradicional e restritiva implicaria óbice ao desejado aprimoramento e fortalecimento dos Tribunais de Contas, contudo, ao se buscar uma interpretação sintonizada com os fundamentos da República Federativa do Brasil e com os princípios constitucionais, será possível constatar a real possibilidade de exercício direto de poder pelo povo, de modo que a forma de escolha dos membros das Cortes de Contas possa ser alterada por meio de proposta oriunda da direta vontade popular com o intuito de privilegiar não apenas critérios político-partidários, fisiológicos ou corporativos, mas sim buscar a correção de uma clara desfuncionalidade que fragiliza e aniquila a legitimidade democrática dos Tribunais de Contas.

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[1] Artigo originalmente apresentado no VII Encontro Internacional do CONPEDI, realizado na cidade de Braga, Portugal, nos dias 07 e 08 de setembro de 2017.

[2] Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais, pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV; Especialista em Direito Público pela Universidade Gama Filho (RJ); Membro colaborador da Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), durante inspeções realizadas no período de novembro de 2014 a março de 2017; Instrutor do Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD); ex-Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo; Promotor de Justiça (MPES).

[3] BONAVIDES, Paulo. Emenda à Constituição por iniciativa popular. In LEITE, George Salomão (coord.). Direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: Jus Podvim, 2011.

[4] MACHADO, Álvaro Augusto Lauff e PESSANHA, Jackelline Fraga. A iniciativa popular como proposta de emenda à Constituição: uma construção hermenêutica a partir da democracia participativa. Disponível em <http://www.derechoycambiosocial.com/revista031/A_INICIATIVA_POPULAR.pdf>, acesso em 28 de mai de 2017.

[5] Apenas as Constituições dos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Para, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, bem como da Lei Orgânica do Distrito Federal permitem processos de reforma por meio de Emendas oriundas de iniciativa popular.

[6] FABRIZ, Daury Cézar e MOREIRA JÚNIOR, Ronaldo Félix. O mito da soberania popular – a ausência da participação democrática no processo legislativo brasileiro. Revista Derecho y Cambio Social. Disponível em <http://www.derechoycambiosocial.com/revista040/O_MITO_DA_SOBERANIA_POPULAR.pdf>, acesso em 29 de mai de 2017.

[7] PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito constitucional democrático: controle e participação como elementos fundantes e garantidores da constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 155.

[8] SILVA, Rodrigo Monteiro da. INICIATIVA POPULAR E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: entraves à construção de uma cidadania ativa. Revista Derecho y Cambio Social. Disponível em <http://www.derechoycambiosocial.com/revista043/INICIATIVA_POPULAR_E_DEMOCRACIA_PARTICIPATIVA.pdf>. Acesso em 31 mai. de 2017.

[9] PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito constitucional democrático: controle e participação como elementos fundantes e garantidores da constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 163.

[10] PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas na democracia participativa. 3ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 162.

[11] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política: fundamentos e técnicas constitucionais da democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 03.

[12] BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991. p. 27.

[13] BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991. p. 83.

[14] BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um direito constitucional de luta e resistência por uma nova hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008. p. 51.

[15] AGUIAR, Afonso Gomes. O Tribunal de Contas na ordem constitucional. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008. p. 13

[16] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Novo Tribunal de Contas: Órgão protetor dos direitos fundamentais. In: Alfredo José de Souza et al. 2 ed. ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. p. 33.

[17] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Novo Tribunal de Contas: Órgão protetor dos direitos fundamentais. In: Alfredo José de Souza et al. 2 ed. ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. p. 39.

[18] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Novo Tribunal de Contas: Órgão protetor dos direitos fundamentais. In: Alfredo José de Souza et al. 2 ed. ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. p. 48.

[19] VIEIRA, Luciano. Escolha de Conselheiro de Tribunais de Contas: uma questão de moral (e Cívica). Estadão, São Paulo, 18/11/2013. Disponível em <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/artigo-escolha-de-conselheiro-de-tribunais-de-contas-uma-questao-de-moral-e-civica/>. Acesso em 28 mai. de 2017.

[20] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Disponível em http://aplicativos.tjes.jus.br/sistemaspublicos/consulta_12_instancias/descricao_proces.cfm>. Acesso em 30 mai. de 2017.

[21] BRASIL. Presidência da República. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/lcp/lcp64.htm>. Acesso em: 30 mai. 2017.

[22] BRASIL. Presidência da República. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/lcp/lcp135.htm>. Acesso em: 30 mai. de 2017.

[23] Disponível em < http://www.ampcon.org.br/>. Acesso em 30 mai. de 2017.

[24] GARCIA, Mônica Nicida; FIGUEIREDO, Marcelo. Corrupção e direito administrativo. In: SPECK, Bruno Wilhelm. Caminhos da transparência: análise dos componentes de um sistema nacional de integridade. Campinas: Unicamp, 2002. p. 22-30.

[25] RIBEIRO, Antonio Silva Magalhães. Controle e corrupção na Administração Pública brasileira. São Paulo: Atlas, 2004. p. 130.

[26] CASTARDO, Hamilton Fernando. O Tribunal de Contas no ordenamento jurídico brasileiro. Campinas: Millennium, 2007. p. 127.

[27] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Democracia interna no Poder Judiciário: eleições para os cargos diretivos dos tribunais no paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Constitucional e Internacional. v. 81, p. 199-228, 2012.

[28] BRITTO, Carlos Ayres. O Novo Tribunal de Contas: Órgão protetor dos direitos fundamentais. In: Alfredo José de Souza et al. 2 ed. ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. p. 190.

[29] O artigo 73, § 2º, inc. I, da Constituição Federal (norma regularmente observada em âmbito estadual) determina que dentre os 09 (nove) integrantes do Tribunal de Contas da União, é de observância obrigatória a escolha de duas vagas, alternadamente, dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice pelo Tribunal, segundo os critérios de antiguidade e merecimento.

[30] BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001. p. 355.

[31] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 777.

[32]Brasil. Câmara dos Deputados. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=169568>. Acesso em 30 mai de 2017.

[33] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. atual. e rev. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 412.

[34] CASTARDO, Hamilton Fernando. O Tribunal de Contas no ordenamento jurídico brasileiro. Campinas: Millennium, 2007. p. 127.

[35] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Funções do Tribunal de Contas. Revista de Direito Público. São Paulo: n. 72, out/dez. 1984. p. 136.

[36] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo71.htm>. Acesso em 30 mai de 2017.

[37] VILLELA, José Guilherme. Limitações Constitucionais à autonomia em matéria de Tribunais de Contas. Revista do Tribunal de Contas do Distrito Federal. V. 5. 1976. p. 157. Disponível em <http://www.tc.df.gov.br/app/biblioteca/pdf/PE500257.pdf>. Acesso em 30 mai. de 2017.

[38] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 321.

[39] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 346.

[40] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 346.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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