Técnicos e conselheiros do Tribunal de Contas divergem sobre as contas do Estado em 2014. Caberá à Assembleia Legislativa apurar a responsabilidade de Luiz Fernando Pezão e Sérgio Cabral no caso
Por Hudson Corrêa e Cristina Grillo
No dia 19 de maio de 2008, o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, deu uma volta de bicicleta ao redor da prefeitura de Paris. Encantado com as ciclovias francesas que visitara, aprumado em um terno impecável, Cabral tirou as mãos do guidão, esticou os braços no ar e pedalou confiante de que não cairia. Um relatório do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), obtido por ÉPOCA com exclusividade, revela que Cabral, em 2014, pode ter pedalado também no sentido metafórico.
Conforme o parecer, elaborado em maio por técnicos do TCE-RJ, Cabral e Pezão – que assumiu o governo em abril de 2014 – deixaram de contabilizar dívidas que somaram R$ 1 bilhão. Os bens e serviços foram entregues pelas empresas, mas não houve pagamento naquele ano nem registro do gasto. A maior parte da dívida não contabilizada, no valor de R$ 626 milhões, foi assumida com a Concessionária Rio Barra, responsável pela construção da Linha 4 do metrô, que ligará a Zona Sul carioca à Barra da Tijuca. A obra é de vital importância para as Olimpíadas de 2016. Conforme documentos do TCE-RJ, o pagamento da dívida com a Concessionária Rio Barra só ocorreu em 27 de fevereiro de 2015. Em 2014, segundo os técnicos, a Companhia de Transporte sobre Trilhos (Riotrilhos), órgão do governo responsável pelas obras do metrô, não tinha orçamento para honrar o compromisso. O restante da dívida não contabilizada, de cerca de R$ 375 milhões, está diluída em diferentes áreas, como a compra de alimentos para presidiários.
Segundo os 20 auditores do TCE responsáveis pelo relatório de 602 páginas, feriu-se a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e também a Lei das Finanças Públicas. Sancionada em maio de 2000 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, a LRF visa o controle e a transparência dos gastos públicos, principalmente no final do mandato do governante. Conforme o relatório, Cabral e Pezão infringiram a LRF ao assumir dívidas nos últimos oito meses de administração, sem dinheiro em caixa para pagá-las. O R$ 1 bilhão corresponde a 1,3% das despesas autorizadas em 2014, mas faz uma grande diferença nas contas do Estado. Ao pesarem na balança a receita arrecadada e as despesas empenhadas, os auditores chegaram a um resultado positivo de R$ 122,7 milhões em caixa. Quando descobriram o papagaio de R$ 1 bilhão, não registrado no balanço, os técnicos concluíram que o saldo se transformava em um déficit de R$ 878 milhões.
Os técnicos do TCE-RJ apresentaram parecer contrário à aprovação das contas. O plenário do TCE-RJ, no entanto, aprovou as contas, na primeira vez em que divergiu do parecer dos técnicos. O voto dos seis conselheiros foi unânime. O conselheiro relator do processo no Tribunal, Aloysio Neves Guedes, foi chefe de gabinete de Cabral quando ele foi deputado estadual e presidente da Assembleia Legislativa, entre 1995 e 2003. Ele concordou que a dívida bilionária não foi contabilizada, mas entendeu que Cabral e Pezão não devem ser responsabilizados. Segundo ele, os gestores dos órgãos públicos, subordinados ao governador, deverão ser chamados a se explicar. Os outros seis conselheiros votaram com Guedes. Numa coisa técnicos e conselheiros concordam: a dívida de R$ 1 bilhão não foi contabilizada pelo governo.
A aprovação das contas no TCE-RJ sofreu críticas de especialistas ouvidos por ÉPOCA. O conselheiro Guedes baseou seu voto em um relatório de 60 páginas apresentado pelo secretário-geral de Controle Externo, Carlos Roberto Leal, chefe dos auditores. O relatório contraria a conclusão do corpo técnico do órgão, que recomendou reprovar as contas. Após a mudança, as duas técnicas que estiveram à frente da auditoria pediram demissão dos cargos. Lucieni Pereira da Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo e auditora do TCU, diz que o parecer de Leal pode até ser questionado na Justiça, já que ele, funcionário de nível médio, não tem formação na área. “Manifestar-se sobre cumprimento da LRF não é matéria trivial, exige conhecimento técnico específico”, afirmou a auditora.
A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê punições para quem a descumprir. Governadores podem ficar inelegíveis por oito anos, responder a processo por improbidade administrativa e a ação penal por gastos e manobras à margem da lei
Doutor em Direito Público e fundador da Associação Brasileira de Direito Tributário, o advogado Sacha Calmon diz que não contabilizar gastos afronta a lei. “É uma sonegação. A LRF faz do governante um escravo do orçamento. O governo não pode esconder despesas. Se fosse uma empresa, o que ela diria aos acionistas? Como contribuintes de impostos, somos acionistas do Rio de Janeiro e do Brasil”, afirmou. “Até a dona de casa sabe que não pode assumir dívidas sem orçamento para pagar”, disse o advogado Henrique Oliveira, mestre em Direito Público e sócio do escritório Trigueiro Fontes. “Em tese e em cima de regras nacionais, não se devem assumir compromissos que não estejam previamente autorizados e especificados no orçamento”, disse o economista José Roberto Afonso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas. Ele disse, porém, que precisaria de mais detalhes para comentar a situação específica do TCE-RJ.
O TCE-RJ enviou a papelada à Assembleia Legislativa, que julgará as contas a partir desta semana, quando os deputados voltam do recesso. “O plenário de 70 deputados dará a palavra final, como manda a legislação”, diz o deputado Luiz Paulo (PSDB), há oito anos na Comissão de Orçamento da Casa. A LRF prevê punições para quem a descumprir. Governadores podem, por exemplo, responder a processo por improbidade administrativa e até ação penal por gastos e manobras à margem da lei. Se as contas forem julgadas irregulares pela Assembleia, os responsáveis podem ficar inelegíveis por oito anos em razão da Lei da Ficha Limpa.
Por meio de sua assessoria, Cabral disse que “a contabilização de receitas e despesas governamentais é feita ao fim de cada ano fiscal”. Ele afirma que nenhuma lei impede Guedes, seu ex-funcionário, de julgar as contas, e houve aprovação unânime no Tribunal. Os conselheiros do TCE-RJ, por meio de assessoria, disseram que prevaleceu o parecer elaborado pelo secretário Leal. Segundo eles, Cabral e Pezão não feriram a lei, pois não deixaram dívidas para o próximo mandato. O valor questionado, afirma o TCE-RJ, foi abatido porque “os empenhos a elas relacionados foram cancelados ou não efetuados”. Mas, afirma o Tribunal, “os gestores terão de explicar, individualmente, as razões pelas quais cancelaram ou não efetuaram os empenhos”.
O governador Pezão afirmou não haver irregularidades na prestação de contas, mas reconhecei que deixar de empenhar despesas é proibido por lei. As secretarias de Planejamento e de Fazenda, afirmaram que 33% da dívida não contabilizada se refere a gastos continuados “que deixaram de ser processados por razões de ordem administrativa”, como atraso no envio de faturas. Quanto à construção do metrô, a dívida de R$ 626 milhões deixou de ser empenhada “porque o processamento da despesa de uma grande obra é complexo, envolvendo a emissão de relatórios de medição, inspeções e fiscalizações, atestamento pelos fiscais da obra, para o posterior empenhamento, liquidação e pagamento”. Ainda segundo as secretarias, havia recursos orçamentários e financeiros para bancar a obra do metrô e ” ainda deduzindo cerca de R$ 1 bilhão em despesas de exercícios anteriores, devidamente registrados no TCE-RJ, o estado apresenta uma suficiência de caixa de R$ 671,5 milhões ao fim do exercício” de 2014, em cumprimento à LRF.
A Concessionária Rio Barra afirmou “que os pagamentos foram efetivados no primeiro bimestre de 2015, depois de concluído o processamento das despesas, emissão e verificação dos relatórios de medição e inspeções feitas por fiscais do Estado. A empresa disse que “não pode interromper a prestação dos serviços antes de 90 dias de atraso no pagamento, prazo estabelecido em contrato, que está em linha com a Lei de Licitações”.
Fonte: Revista Época